Diretor da Faculdade de Etnodesenvolvimento fala sobre o recente curso da UFPA

Por Frederico Vreuls

Adotando uma prerrogativa até então inédita, a Universidade Federal do Pará abriu vagas, a partir de 2010, para o Curso de Licenciatura e Bacharelado em Etnodesenvolvimento. É único no país, em nível de graduação, a atuar na formação e inclusão socioacadêmica de povos indígenas e tradicionais, organizado sob o eixo da diversidade cultural e da pedagogia da alternância. Tal metodologia consiste na divisão do calendário de atividades entre o Tempo-Universidade e o Tempo-Comunidade. Neste último, os discentes realizam ações de pesquisa e intervenção nos grupos a que pertencem e produzem relatório das atividades realizadas.

Após um ano de prática educacional, marcando um importante período de avaliação do processo, ocorreu no dia 27 de agosto o I Seminário de Etnodesenvolvimento: Formação Acadêmica, Perspectiva e Desafios para Povos e Comunidades Tradicionais, em Altamira-PA. Em entrevista concedida por e-mail, Assis da Costa Oliveira, diretor da Faculdade de Etnodesenvolvimento, fala, dentre outros temas, da realização do seminário, dos resultados e perspectivas do curso, da educação diferenciada e da relação com o Estado e movimentos sociais.

>> Veja aqui algumas fotos realizadas na UFPA

Quais foram os principais pontos debatidos durante o I Seminário de Etnodesenvolvimento?
A meu ver, houve pelo menos quatro abordagens centrais. A primeira, de ambientação para os participantes externos, acerca da noção teórica de etnodesenvolvimento e de como ela fundamentou a proposição de um curso de graduação universitária. Uma discussão da própria condição da universidade e do conhecimento científico é provocada quando se trabalha numa perspectiva de incluir radicalmente povos e comunidades tradicionais como partícipes deste espaço. Em um curso focado na promoção do etnodesenvolvimento, quer dizer, do desenvolvimento que respeite a autonomia dos grupos e que garanta o acesso à qualificação técnico-científica, é esperado, ao mesmo tempo, que se reordene o próprio espaço da universidade por conta destes “novos” sujeitos e culturas de saberes, até então excluídos. Lembrando Boaventura de Sousa Santos, procuramos transitar da ideia de Universidade para a de Pluriversidade, algo ainda em construção e com muitas dificuldades de consolidação, mas fundamental de ser discutido. Um segundo ponto diz respeito à perspectiva interdisciplinar da formação acadêmica e os desafios da pedagogia da alternância. Foi posto em questão quais as competências e as habilidades que os discentes precisam ser formados tendo em vista o cenário de reivindicações sociopolíticas dos povos e comunidades tradicionais e as articulações com instituições públicas e entidades sociais. A formação deste etnogestor precisa estar sintonizada com os conflitos e a luta por direitos, o que gerou, no Seminário, o indicativo de novas disciplinas e de novos campos do conhecimento que precisam ser agregados à formação interdisciplinar. A terceira questão discutida foi a da atuação profissional, um campo de debate aberto, apesar de não necessariamente indefinido. Foi debatida, aqui, a importância de assegurar o compromisso político com os grupos de pertença e a necessidade de conquista de espaço e de campo de atuação. O último ponto debatido foi o das parcerias interinstitucionais, sendo que todas as instituições presentes no seminário se mostraram solícitas em estabelecer convênios para a efetivação de estágios aos estudantes.

Primeiro dia de aula (Janeiro de 2011)
Primeiro dia de aula (Janeiro de 2011)

Sendo um curso voltado para diferentes tipos de população, como é pensada a educação diferenciada?
A proposta é que todos os núcleos de disciplinas dialoguem com a temática da diversidade cultural, além de trabalharem de maneira próxima com as narrativas e experiências sociais dos discentes. A pedagogia da alternância é importante por colocar de maneira muita intensa a relação entre teoria e prática e a vivência pelos docentes das realidades sociais de cada discente, em termos coletivos e individuais. Colocaria também em pauta, nesta metodologia de educação diferenciada, certa “tendência” para a constante descolonização dos conhecimentos científicos e valorização, com status de ciência, dos conhecimentos tradicionais. Há assim uma preocupação, ao mesmo tempo, de debater as possibilidades de instrumentalização dos conhecimentos científicos para os interesses sociais das comunidades, e também de indicar, e muitas vezes ouvir dos discentes, os riscos de determinados conhecimentos científicos. Por fim, indicaria também a regra instituída no PPC do curso, e seguida na prática educacional, de existir sempre mais de um docente em cada disciplina, o que contribui para a construção interdisciplinar dos programas das disciplinas e nas discussões em sala.

Quais os desafios na implementação do curso?
Ocorrem desafios devido à dificuldade, por parte da Universidade, de reconhecer a adoção de outra dinâmica
educacional, a pedagogia da alternância. Isso gera barreiras de cunho administrativo, como problemas para realizar a matrícula e para lançar os conceitos, ou então questões relativas à permanência estudantil. Aliás, esse último ponto é bem complicado, pois quanto mais distantes se situam os discentes do município de Altamira, mais difícil fica sua permanência. Isto ocorre, sobretudo, com os estudantes oriundos de comunidades quilombolas do Marajó que precisam se deslocar até Altamira para o Tempo-Universidade. Além disso, o município de Altamira, por conta da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, passar por processo intenso de encarecimento do custo de vida (sobretudo alimentação e moradia), que impactam no aumento dos gastos feitos pelos discentes durante o Tempo-Universidade.

Quem são os docentes?
Os docentes permanentes são: Assis da Costa Oliveira (formação em Direito), Eliane da Silva Sousa Faria (formação em Arqueologia) e Francilene de Aguiar Parente (formação em Antropologia). Também temos uma rede de docentes parceiros do Curso que sempre se colocam dispostos a nos ajudar com as disciplinas e o Tempo-Comunidade; são eles: Jane Felipe Beltrão (formação em História e Antropologia), Denise Pahl Schaan (formação em Arqueologia), Zélia Amador de Deus (formação em Artes e Antropologia), Luiza Mastop (formação em Antropologia), William Domingues (liderança indígena com formação em Pedagogia e ampla atuação no campo da Saúde), Rosani Fernandes (liderança indígena com formação em Pedagogia e em Direito), Rosa Elisabeth Acevedo Marin (formação em Sociologia e História), Flávio Barros (formação em Educação e Biologia), Raquel Lopes (formação em Linguística) e Vilma Pinho (formação em Pedagogia), mas posso ter esquecido de alguns nomes. Ainda assim, um desafio que temos é a ampliação do corpo docente para possibilitar a ampliação das turmas do curso. Somos, atualmente, três docentes, e ainda temos dois concursos abertos, um na área de Saúde e outro de Educação, mas o ideal é que sejamos, pelo menos, dez docentes permanentes, fator que daria mais tranquilidade para a distribuição e a condução de duas turmas.

Onde irão atuar esses futuros profissionais?
A atuação do profissional pode ser interna à comunidade, administrando instituições como escola, posto de saúde e associação, ou externa ao grupo de pertença, na intermediação junto aos órgãos públicos (FUNAI, INCRA, ICMBio, EMATER, etc) e entidades privadas (ONG’s, empresas, etc) que atuem, direta ou indiretamente, com grupos diferenciados.

Podemos pensar o curso como resistência e alternativa ao agronegócio?
Podemos entender que a resistência e a alternativa já é algo existente nos povos e comunidades tradicionais. O curso de Etnodesenvolvimento, por princípio ético e por reivindicação sociopolítica, discute questões que procuram confrontar o modelo hegemônico e valorizar as práticas tradicionais de uso de territórios, recursos naturais e conhecimentos. Nesse sentido, podemos afirmar categoricamente que ele se coloca em confronto com os modelos de desenvolvimento hegemônicos que têm, como seus agentes centrais na atualidade, o agronegócio, as multinacionais de exploração do minério e da biodiversidade, e o próprio Estado – entendendo por Estado não um ente monolítico, mas uma complexa rede de interesses e sujeitos que disputam entre si e com a sociedade a própria noção e operação destes Estados dentro do Estado. São esses, para a maioria dos povos e comunidades tradicionais com representantes discentes no curso, os principais antagonistas dos conflitos socioambientais e, com isso, alvo de nossa confrontação ideológica e educacional. Mas não acredito que se possa inviabilizar, depois de formados no curso, a atuação destes profissionais dentro do mercado financeiro. Os discentes tem liberdade para trabalharem onde quiserem, apenas ressaltamos os compromissos políticos que fizeram com que suas comunidades acreditassem e os habilitassem para participarem deste curso. Aliás, temos uma grande preocupação em fazer a crítica ao mercado financeiro, mas também em pensar e debater estratégias para instrumentalizá-lo em favor dos povos e comunidades tradicionais.

Como tem sido a participação, apoio e interesse dos movimentos sociais?
Os movimentos sociais possuem representantes estudantis no curso. O Movimento Negro de Altamira, o Movimento de Mulheres, os Sindicatos Rurais, as Associações Indígenas, as Colônias de Pescadores e os Movimentos Ecumênicos, pelo que me lembro, têm representantes. Isto porque, como enfatiza Alfredo Wagner Berno de Almeida, os povos e comunidades tradicionais da região se objetivaram em movimentos sociais, há pelo menos 20 anos, para garantirem a conquista de direitos. Sendo assim, o curso é fruto de uma demanda dos movimentos sociais, sobretudo das associações indígenas, e dialoga intensamente com eles. A própria dinâmica da pedagogia da alternância nos coloca em contato direto com os movimentos sociais sempre que vamos às comunidades monitorar a realização do Tempo-Comunidade. Devemos avançar é em transformar esta aproximação em efetivas propostas de parcerias, convênios e projetos.

Sendo o único curso de Etnodesenvolvimento no Brasil, depois de um ano, quais as perspectivas de ampliação de iniciativas como essa para o restante do país?
O curso de Etnodesenvolvimento será uma demanda em todos os lugares em que existam povos e comunidades tradicionais, portanto, é algo viável em todo o Brasil. Depois de um ano de prática educacional e dois de existência institucional, posso dizer que estamos num momento estratégico de atualização de nosso Projeto Pedagógico, que deve partir daquilo que discentes e docentes entendem como deve ser o curso. O balanço atual do curso é que ele teve imenso sucesso em promover a inclusão social destes estudantes, tendo uma baixa quantidade de evasão (quatro, até agora) e retenção (duas, até agora).

>> Veja aqui algumas fotos realizadas na UFPA

This entry was posted in Educação superior de indígenas. Bookmark the permalink.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *